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ESCREVER SOBRE ESCREVER POESIA

 

                                                                           Por EDUARDO MILLÁN

[Eduardo Millán é um dos poetas e ensaísta mais criativos e influentes da América Latina. Uruguaio. Radicado no México.]

 

Escrever sobre  escrever poesia supõe pensar a suspensão, entre outras coisas que acontecem sob condição interrompida. Há uma decisão tomada de modo lento, diariamente, de modo que já não é possível inventar o momento da detonação que anunciaria talvez, em outro tempo de certeza, o despontar de um destino.  Perdeu-se no tempo o tempo da largada.  Inventar o momento de início como se se tratasse de uma encenação— ali a cadeira, a mesa, os livros ao fundo e as fotografias, acima a noite, as estrelas — equivale a parodiar Mallarmé no momento exato: esse quando se vestia para escrever. Outras escrituras possibilitam ir a encontro dos fatos — um romancista toma muitas notas, usa manuais de carpintaria, dicionários de plantas, dicionário de aves, atlas, anuários, almanaques e os diferentes Calendários de Ti: os que são usados para lembrar teu aniversário. Um ensaísta faz levantamento de campo, à menor provocação pega uma pá e começa a cavar: o ensaio tem muito a ver com a poesia.

Tenta pensar que escrever poesia foi um ato sempre muito parecido. É o mesmo objetivo que leva a afirmar que a poesia sempre é a mesma. Essa noção — convicção para alguns praticantes que veem na poesia o espelho de sua necessidade de duração — é um turbilhão, especialmente quando se enfrenta a realidade da poesia nesse momento histórico..  Ainda que a poesia tenha dado voltas várias vezes sobre si mesma desde a morte (hegeliana, do XIX) da arte — fundamento filosófico da emergência das vanguardas estético-históricas das primeiras décadas do século XX — e, também, tenha recusado essa "morte" simbólica e retornado às fontes clássicas da versificação, à clara e dura fachada e à rematização específica (três  momentos que sintetizam o instante de esplendor de recusa que manifestam as vanguardas a toda ideia de tradição poética), sua realidade mudou no que diz respeito às distintas concepções que se tem dessa prática. Hoje coexistem uma visão eternizante, intocada pelo fogo dos dias, mas bastante tocada pelo fogo dos deuses que, em algum recanto do éter, essa visão eternizante aposta que ainda estão, com noções "veiculares" de poesia: uma, a que transmite as necessidades de uma comunidade específica: outra, a que usa a palavra poética como instrumento de persuasão ou habilitação de consciências para uma transformação na sociedade, e todas com uma visão niilista quanto à sua possibilidade de ação no receptor: nada há que modifique a indiferença do ser humano presente, nem a alma em pluma de Guido Cavalcanti nem o mais árido e agreste João Cabral de Melo Neto, o Cavalcanti brasileiro.  Entre o contemporâneo de Dante e o integrante da geração 45 da literatura do Brasil muita água rolou, subterrânea às vezes, fios de água salpicando o olhar crítico de uma oscilação turva entre paixão e desconcerto. Mas o que vem ao caso aqui, neste agora, é a significação, o ato de escrever poesia considerado como fenômeno em si mesmo.

Tenho minhas dúvidas de que uma visão precisa da poesia não implique ao mesmo tempo um modo de escrevê-la —não só técnico, não manuscrito ou maquínico — há um encontrar a maneira de não escrever nem para nem em falta, recuperar o modo de escrever porque sim, atento a qualquer exterioridade: a do ancião da dinastia Tang que vê cair as folhas no tempo dos olhos da amada que não está; a de Mallarmé, quando apenas um olhar vencia a brancura da página para emboscar-se nos precipícios de um abismo com ruído de água e de asas contra o céu: a de hoje, aqui, atenta à voracidades de todo mundo que salta, fala, grita, rompe, aniquila, se dirige, conspira, desce pela ladeira junto aos que amam os pinheiros; tudo que denota nossa fragilidade e nossa impotência diante das coisas e além disso, isso é importante, o peso da palavra, peso mental dependurado na sombra que constrói à parte.

Esse último: escrever poesia é a única maneira que conheço de acreditar na existência de uma escuta para a palavra ou, se já não há, de precipitar o momento de sua criação: a criação do nascimento de uma escuta, isso que os scholars dizem quando dizem: "cada escritor cria seu leitor", isso não: a criação do nascimento de uma escuta para que um mundo já inédito, por esquecido, o da atenção, nasça.

2. As pessoas criam os espectros de suas estirpes ou o seu modo espectral de aparição. Porque sempre me senti afim a Guillaume de Poitiers e a seu "Farei um ver dde dreyt nien" ("Fiz um poema de nada")?  Porque assim se faz um poema: umas gramas de amor do buraco deixado pelo corpo do amor mais um punhado de farinha para fazer pão umedecido pela chuva que passou entre as telhas rachadas dão esta espécie de sonho que se conquista sob um paraíso no momento arrebentado de toda uma época: depois do almoço ao meio-dia, meio dormido sobre o ritmo do passo a passo do cavalo, por ali a gente passa sob as folhas, à beira da sombra fresca, ladeando o muro de pedra. Somado a essa certeza: pode ter sido de outra maneira ou não ter sido. Pode não ter existido esse poema, nenhuma folha que desse sombra ao passo do cavalo, nenhum Guillaume de Poitiers retirado à luz natural de seu castelo escreve nem uma palavra sobre essas folhas amarela, crocantes como queijo ao fogo, desidratadas de todo veneno e planta veneno, nem de noite sob a palidez de um candelabro. Poderia não ter sido. Escrever então é jogar quantas vezes a consciência tolere a possibilidade de "podia não ter sido" imediatamente depois do que realmente foi: um saldo, um resto, um excedente da ação que coagulou.  Isso nos torna — a cabeça da arte gira ao redor do oceano mundializado de coisas, notas, notícias, crianças palestinas arrasadas — menos puros, mais reais, e meio perdida a noção humana nestas terras.

 

MILÁN, EduardoEscrever sobre escrever poesia.  Seleção Teresa Arijón, Bárbara
Belloc, Renato Rezende. Tradução Cláudia Dias Sampaio.   Rio de Janeiro: Editora
Circuito, 2017.   204 p.  ISBN 978-85-9582-005-0   


 

 

 
 
 
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